segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A música na palavra - por Leandro Maia

A música na Palavra

Sabemos que não basta escrever poesia para se fazer uma canção, tampouco basta formação musical e compor melodias. A formação dos cancionistas é feita, na maioria dos casos, de maneira espontânea e imprevisível, já que cada um tem seu "jeito" de compor. Esse "jeito" liga-se, muitas vezes, a práticas milenares de criar - ou fazer surgirem - as canções. Criar uma boa canção envolve algo mais.

Luiz Tatit, em O Cancionista, declara que o compositor de canções atua como um "malabarista" que equilibra melodia no texto e texto na melodia.[1] Seu malabarismo se dá através da manipulação do tripé duração (ritmo, andamento, velocidade), freqüência (altura, entoação) e timbre vocal. Quando em ritmo acelerado, a melodia tenderia a se desenvolver menos; quando a freqüência for o parâmetro musical predominante de uma composição, o ritmo tenderá a se desacelerar.

Tatit dá o nome tematização para o primeiro processo (aceleração) e de passionalização ao segundo (desaceleração). Tais elementos são complementares e se alternam no decorrer das obras: as canções temáticas são em geral permeadas pelo sentimento de plenitude, de aproximação do sujeito com o objeto desejado; as canções passionais denotam o sentimento de ausência, onde o sujeito evidencia a falta do objeto de desejo. A presença do sujeito de desejo é evidenciada, além disso, pelo timbre vocal - que é a voz em todos os seus desdobramentos, desde as características vocais propriamente ditas até a utilização de uma entoação ou impostação mais coloquial, por exemplo.

A partir da leitura da dissertação Araçá Azul: uma leitura semiótica, de Pieter Dietrich - orientado por Luiz Tatit, pudemos constatar sobre o Modelo de Tatit[2] o seguinte esquema:


TEMATIZAÇÃO
· Aceleração
· Descontinuidade
· Foco nas Durações
· Concentração
· Involução
· Repetição de notas/graus conjuntos
· Memória/Repetição

PASSIONALIZAÇÃO

· Desaceleração
· Continuidade
· Foco nas Alturas
· Extensão
· Evolução
· Saltos intervalares/tessitura mais ampla
· Surpresa/Informação

Estas seriam grandezas, por assim dizer, inversamente proporcionais, mas não excludentes, pois podem aparecer de forma combinada - ou alternada - numa mesma canção. Em Garota de Ipanema (Tom Jobim/Vinícius de Morais) podemos claramente perceber a transição da tematização - primeira parte - para a passionalização - segunda parte, retornando ao processo temático na última estrofe. Tatit realiza esta formulação em "O Século da Canção".[3]
Garota de Ipanema merece algumas considerações à parte, uma vez que é citada em, pelo menos, três livros do mesmo autor: Canção: eficácia e encanto; O Cancionista e O Século da Canção. É como se esta obra representasse uma síntese da canção popular brasileira. Uma síntese "letrada", tendo em vista que seus compositores foram Tom Jobim - músico e arranjador de sólida formação musical - e Vinícius de Moraes - reconhecido poeta, letrista e até então diplomata. Cabe-nos, então, buscar o que é que a garota tem que a fez tão representativa da canção brasileira.

Além dos elementos constitutivos da canção - duração, freqüência e timbre - e dos processos significativos relacionados ao andamento e ao ritmo, tais como a tematização e passionalização, a teoria de Tatit aborda, também, a relação entre melodia e texto através do conceito de tonema:

Os tonemas são inflexões que finalizam as frases entoativas, definindo o ponto nevrálgico de sua significação. Com apenas três possibilidades físicas de realização (descendência, ascendência ou suspensão), os tonemas oferecem um modelo geral e econômico para a análise figurativa da melodia, a partir das oscilações tensivas da voz. Assim, uma voz que inflete para o grave, distende o esforço da emissão e procura o repouso fisiológico, diretamente associado à terminação asseverativa do conteúdo relatado. Uma voz que busca a freqüência aguda ou sustenta sua altura, mantendo a tenso do esforço fisiológico, surge sempre continuidade (no sentido de prossecução), ou seja, outras frases devem vir em seguida a título de complementação, resposta ou mesmo como prorrogação das incertezas ou das tensões emotivas de toda sorte.[4]

Este conceito (tonema) talvez seja o elo comum entre a enunciação da fala e a enunciação musical da canção - regidas pelos mesmos princípios lingüísticos. Através desta elaboração, Luiz Tatit aborda subliminarmente a existência de uma espécie de melodia da linguagem, onde as curvas melódicas seguiriam o seguinte esquema:


TONEMAS
Descendente V
· Inflexão para o grave
· Distensão do esforço fisiológico
· Asseverativo
· Repouso
· "Ponto Final"
· Resolução/Aproximação

Ascendente ^

· Inflexão para o agudo
· Aumento do esforço fisiológico
· Continuidade
· Prossecução/Tensão
· "Ponto de Interrogação"
· Tensão/Afastamento


Suspensivo ->

· Sustentação da altura
· Manutenção do esforço fisiológico
· Continuidade
· Prossecução/Tensão
· "Ponto de Exclamação"
· Tensão/Afastamento

Torna-se interessante constatarmos que o conceito de tonema desenvolvido pelo autor poderia ser aplicado também à voz falada se analisássemos um poema recitado, um discurso ou a fala de um ator, por exemplo. Isto porque podemos também escutar um código de alturas que está presente na fala: tonema descendente sempre que finalizamos uma idéia comunicativa; tonema ascendente, que gera a tensão necessária para a realização de uma pergunta. Sob o ponto de vista de um músico, toda fala é musical.[5]


Ainda no modelo de Tatit, quando a canção se aproxima da linguagem falada, ocorre o processo de figurativização

entendida como o estreitamento do laço entre fala e canção, ou melhor, a aproximação desta em direção àquela, tem como principal fator o desfecho da frase melódica, ou seja, o tonema.[6]

Existe, então, uma correspondência entre tematização e figurativização, da mesma forma em que se constata a relação direta entre passionalização e modalização. Se a figurativização consiste numa aproximação com a fala cotidiana; a modalização consiste na aproximação com os códigos musicais.

[1] Tatit, Luiz. O Cancionista, p. 9.
[2] Dietrich, Pieter. Araçá Azul: uma análise semiótica, p. 20.
[3] Tatit, Luiz. O Século da Canção. P. 186.
[4] TATIT, Luiz Augusto de Moraes. O Cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996. p. 21.
[5] Verificar o exemplo de Hermeto Pascoal, que transportou para a linguagem musical discursos de celebridades políticas.
[6] Dietrich, Pieter. P. 23

2 comentários:

Guto Leite disse...

Ótimo texto, Leandro, faz jus perfeitamente ao grande livro de Tatit! Tenho uma ressalva a um trecho do livro que fica mais evidente no teu artigo... Penso que o Tatit se esquece da sociolinguística no que tange à variação tonal nos atos de fala, ou seja, quando engrossamos a voz quando queremos um tom de reprimenda e falamos mais agudo, ou suave, em situações amorosas, por exemplo. Assim este tonema talvez agisse também em momentos específicos da fala, talvez... Enfim, mínima ressalva pra uma teoria tão exemplar quanto a do Tatit!

Unknown disse...

Certo Guto. Concordo contigo. Acho que tem algumas coisas a serem mais esmiuçadas na teoria do Tatit. De um modo geral, acredito que tudo o que ele aponta para a canção, como os tonemas, por exemplo, vale para a fala. Até porque ele entende que a canção venha da fala - o que eu particularmente não concordo. Acredito que a canção seja um falar próprio, e que o cancionista é mais um "equilibrista" do que um "malabarista", ou seja, não faz nem discurso falado, nem música, mas "outra coisa", como diria o Augusto de Campos, em "O Balanço da Bossa e Outras Bossas".